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Estado Paradigma



A problemática que se pretende analisar é tremendamente acessível, tão simples que a grande maioria dos cidadãos, quando em confronto com o Estado, quase sempre perde a questão que deu origem à divergência, porque o próprio Estado se escuda na Lei que ele mesmo elabora, aprova, fiscaliza, executa e sanciona, sempre que pode, a seu favor, invocando o argumento que o protege a ele mesmo e culpabiliza o cidadão, sob a forma do princípio jurídico-legal, segundo o qual: “A ignorância da Lei não aproveita ao seu infrator”, logo, “todos devem conhecer a Lei”. O Estado raramente utiliza processos pedagogicamente fiscalizadores e corretores de situações anómalas, preferindo, na maior parte dos casos, a intervenção repressiva e punitiva.
Mas o Estado, na circunstância que se deseja abordar, tem o rosto dos respetivos dirigentes que, antes e depois das correspondentes funções, transitoriamente desempenhadas, justamente à custa da confiança que o cidadão-eleitor neles depositaram, seja no grupo político, seja diretamente no próprio governante.
No exercício das funções que lhes foram cometidas, tais cidadãos, agora investidos de poderes especiais, devem ser os primeiros a cumprir a Lei: com equidade, com tolerância, compreensão e pedagogia preventiva, sem estratégias e processos persecutórios, sem espírito punitivo e, quantas vezes, injusto.
Os titulares de cargos públicos por eleição, são os legítimos representantes do povo e, em Democracia Representativa, o valor Justiça deveria funcionar sempre nos dois sentidos, tal como o valor igualdade de tratamento, de tolerância e da responsabilidade recíproca.
O Estado representativo, em Democracia, e num regime jurídico justo, deve cumprir, tal como exige ao cidadão comum, quando este se prontifica a obedecer à Lei, depois de chamado à atenção, inclusivamente, com efeitos retroativos, se isso for legal, então, de igual forma, o Estado, através do Departamento competente que ao caso couber, deve cumprir, também ele, retroativamente, tudo o que for devido ao cidadão.
Instituir taxas, impostos, derramas e outros instrumentos de cobrança, por serviços prestados, estabelecer normas fiscais sobre atividades, rendimentos e penalizações, entre outras tarefas, são funções que o Estado Democrático de Direito tem competência, legitimidade e legalidade para exercer, e que deve fazê-lo com equidade e oportunidade, dentro dos prazos, incluindo as respetivas tolerâncias.
O Estado deve dispor de receitas suficientes que lhe permitam desenvolver os programas sociais, económicos, educativos, saúde, acessibilidades, transportes e tantos outros domínios da esfera pública. O Estado, através dos respetivos titulares dos diversos Departamentos, deve ser o exemplo da sobriedade, do rigor, da austeridade, isto é, o paradigma da boa e justa governação e de pessoa de bem.
A aplicação da Lei pelos Órgãos competentes do Estado deve ser igual para todos, e quando o Estado legisla, em favor de um determinado grupo económico, desportivo, cultural ou outro, ignorando o cidadão anónimo que, quantas vezes, tem mais dificuldades em pagar os seus impostos do que um grupo empresarial ou instituição desportiva, está a discriminar, pela negativa, o cidadão, individualmente considerado, o que não é justo.
Num estado Democrático de Direito, a dimensão cívica dos cidadãos deve ser garantida e salvaguardada pelo exercício pleno da cidadania que, obviamente, se deseja ser igual para todos, inclusivamente para a participação fiscal de cada indivíduo ou grupo, porque: «Na prática, o direito de participação pressupõe a reunião de quatro condições: a autonomia da vontade, a nacionalidade, o domicílio, o pagamento de impostos» (MADEC & MURARD, 1998:91).
O Estado Democrático de Direito, enquanto entidade concreta, física e responsavelmente representada nos seus inúmeros Departamentos, orientados e servidos por pessoas concretas, também elas cidadãos de deveres e direitos, tem a obrigação indeclinável de dar exemplos de compreensão, tolerância, resolução justa, equitativa e isenta das situações que: indivíduos, empresas, grupos e associações lhe apresentam; deve legislar objetivamente, sem lacunas, por vezes, deixadas nos textos jurídico-legais; sem ambiguidades, porque de contrário a segurança do Direito é posta em causa e, rapidamente, descredibilizada.
A interpretação da norma jurídica parece que está cada vez mais na dependência do parecer deste ou daquele grupo de advogados, juristas, magistrados e constitucionalistas, sendo certo que na decisão final, muitas vezes, sempre acaba por prevalecer a interpretação do Estado, através dos seus próprios Tribunais: Judiciais, Administrativos, Arbitrais, de Polícia, de Família, de Trabalho, Marítimo, de Comarca, de Circulo, Supremo e Constitucional.
Além disso, na defesa dos seus legítimos interesses, o cidadão de menores recursos, nem sempre tem acesso a uma defesa consistente, empenhada e detentora de boas técnicas, estratégias, metodologias, experiências adquiridas ao longo de uma carreira, porque não pode pagar, por exemplo, a prestigiados causídicos, e/ou grupos/associações de advogados que, em muitas situações, funcionam como autênticas empresas da interpretação do Direito, no sentido de construírem a melhor defesa para o constituinte, incluindo a estratégia de esgotar todos os prazos, até atingir a prescrição do ato que esteve na origem do processo. É evidente que tudo isto custa muito dinheiro, e o pobre não o tem.
O Estado quando legisla, em parte, já está a colaborar com todo um sistema assim instalado e, desta forma, prejudica o exercício da cidadania, no que se refere ao acesso a uma Justiça oportuna, célere e igualitária para todos, porque em certas circunstâncias, privilegia uma minoria de ricos em prejuízo da maioria de pobres, pouco esclarecida quanto aos seus direitos e conhecimento da legislação (até neste aspeto o Estado é desleal para com o cidadão, porque através da Lei determina que a ignorância da norma jurídica não aproveita ao seu infrator, porém, os serviços do Estado, beneficiam de todos os meios para conhecer e aplicar a Lei, precisamente, também, à custa dos impostos daqueles que não a conhecem, porque não podem assinar e/ou não sabem consultar o Diário da República).
O paradigma do Estado Democrático de Direito, deverá ser construído a partir de premissas transparentes, equitativas, isentas e adequadas às situações e legítimos interesses de toda a comunidade, independentemente de posições económico-financeiras, de estatuto sócio-profissional ou de quaisquer estratégias e objetivos ditos de utilidade pública, e/ou do alegado interesse nacional, que mais não servem do que para encobrir, muitas vezes, outros desígnios menos corretos.
Frequentemente, o que se verifica, um pouco por todo o mundo, é que: enquanto o Estado apoia, favorece e legisla a favor de determinados grupos, e estes ficam ao abrigo de benefícios e privilégios, que a maioria não tem, ainda vão permanecendo num determinado local, a produzir alguma coisa, todavia, cessando os benefícios e os privilégios, e diminuindo os lucros, o grupo rapidamente se deslocaliza para outro ponto, começando tudo de novo, depois de enviar para o desemprego trabalhadores, famílias e outras pessoas dependentes, e deixando ao Estado dívidas elevadíssimas que, no fundo, terão de ser suportadas pelos impostos dos contribuintes honestos.
O contrário da situação descrita, pode verificar-se em relação ao cidadão contribuinte, cumpridor, honesto, ou seja, este cidadão que, por “ignorância da Lei” não cumpriu um determinado preceito jurídico, por exemplo, a nível fiscal, imediatamente os Serviços competentes o intimidam e, com grande destreza, lhe hipotecam os parcos bens que, quantas vezes, conseguiu, quase no final de uma vida de sacrifícios, de poupança, de privações, empréstimos com juros elevados e outras dificuldades de vária ordem.
O cidadão anónimo, sem capacidade económica para contratar bons defensores, fica à mercê das decisões de outros seus concidadãos, que naquele momento detêm o poder de executar a Lei, retirando-lhe o património, ou parte dele, que mais tarde até seria para os filhos e netos, não havendo a possibilidade para este cidadão: de beneficiar da prescrição; de uma amnistia; de um perdão, para anulação da dívida que, involuntariamente, porque “desconhecia a Lei”, lhe é imputada.
Outro tanto acontecerá com os grandes grupos, empresas e figuras públicas, ou seja: todos estes contribuintes são tratados de igual forma? Sob o argumento de um qualquer preceito legal, não haverá, por exemplo, perdões de dívidas fiscais, amnistias e outros instrumentos de anulação?
Outro facto que poderá revelar se o Estado é ou não “paradigma de pessoa-de-bem” prende-se com o relacionamento inter-instituições, integradas numa determinada hierarquia e que, supostamente, dependendo umas das outras, a colaboração institucional, e mesmo pessoal, entre os seus dirigentes e funcionários, deverá pautar-se por normas legais, éticas e de boa convivência.
Em Portugal, as dificuldades podem começar logo ao nível do Poder Local, concretamente entre os dois tipos de poderes consagrados na Lei Fundamental: Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, sabendo-se que a grande maioria destas dependem daquelas, em elevada percentagem da arrecadação de receitas e realização de melhoramentos, bem como nos domínios técnicos, de recursos humanos e equipamentos. Ao nível de formação profissional dos Autarcas, também poderiam depender daquela instância do Poder Local.
A boa colaboração entre estes dois níveis do Poder Local é salutar, desejável e rentabilizadora na aplicação de recursos, por isso, a Lei prevê a celebração de protocolos que funcionam como uma delegação de poderes da Câmara Municipal para a Junta de Freguesia, em que esta responde perante o público, fornecedores e prestadores de serviços e também perante a entidade delegante.
Após haver acordo entre as partes, celebra-se o protocolo quanto ao: tipo de melhoramentos a realizar; seus montantes; prazos de reembolso das despesas efetuadas pela Junta de Freguesia, no cumprimento das competências delegadas e execução dos trabalhos.
Quando a entidade delegada, na circunstância, a Junta de Freguesia, tem alguma disponibilidade financeira, deve liquidar os serviços recebidos pelas entidades prestadoras, salários aos trabalhadores e outras despesas, honrando assim, em tempo útil, os compromissos assumidos para com terceiros e transmitindo a imagem de uma Instituição “Pessoa-de-bem”.
Seguidamente, envia a documentação para a entidade delegante, na circunstância, a Câmara Municipal e esta, dentro dos prazos definidos no Protocolo, liquida à Junta de Freguesia os valores protocolados, e acordados entre as partes.
Trata-se de um procedimento legal que traz imensos benefícios para as entidades envolvidas, e para as populações, maior celeridade nos pagamentos aos prestadores de serviços e dignificação das Instituições abrangidas e respetivos responsáveis que, tal como aquelas, tudo devem fazer para serem consideradas “Pessoas-de-bem”.
A administração de uma freguesia, em Portugal, implica, hoje, graves responsabilidades, que são acrescidas em função dos serviços técnicos que o respetivo órgão executivo – Junta Freguesia –, tem ao seu dispor. Na esmagadora maioria das freguesias portuguesas, os autarcas não têm o apoio técnico suficiente, em nenhum setor: administrativo, jurídico, obras públicas, empreitadas e concursos, segurança social, gestão de cemitérios, contabilidade, recursos humanos e outros. Estes autarcas ficam, assim, à mercê de qualquer indivíduo que procura a litigância, quase sempre, de má-fé.
Tal como os municípios, também as freguesias têm a sua história, a sua dignidade, a sua importância e imprescindibilidade na resolução dos problemas comunitários.
A freguesia nasceria, justamente, nos pequenos núcleos populacionais, que se instalaram ao redor das igrejas, sob a orientação do pároco, de que resultaram as paróquias, cujas atividades no meio rural, para além da religiosa, passaram a abranger os domínios sociais e económicos que mais interessavam aos residentes (fregueses), com destaque para a administração de terras, águas, emissão de documentos diversos para, a partir de 1878, se lhes reconhecer e «conferir à freguesia o carácter de serviço público». (TRINDADE, 2003:12).
A dignidade da instituição Freguesia está constitucionalmente consagrada, e coloca-a ao mesmo nível do poder local dos municípios. A definição resulta clara da Constituição da República Portuguesa, donde se pode interpretar que: a freguesia é uma pessoa coletiva territorial; dotada de órgãos representativos; que tem por objetivo a satisfação de interesses próprios da população residente na respetiva área de jurisdição da freguesia, sendo fundamentais os seguintes elementos: território, população, interesses próprios dos moradores e órgãos representativos. (Cf. CRP, 2004: Artº 235º e seg., Págs. 87-89)
E se, por um lado: o Estado tem de construir e implementar o Paradigma de “Pessoa-de-bem”, a começar nas e entre as suas próprias instituições de base: as Autarquias Locais, criando laços de confiança e credibilidade, adotando uma postura pedagógica, atuando em tempo útil, sem discriminações negativas, independentemente das ideologias político-partidárias dos diversos responsáveis;
Por outro lado, e nas atuais circunstâncias, o exercício do poder local democrático, nas freguesias rurais e semi-urbanas, carece de uma profunda revisão e estruturação. Nesse sentido, o cidadão contemporâneo tem de participar no processo de atualização e ajustamento às realidades existentes, de forma a garantir dignidade, competência, eficácia, iguais direitos e tratamento para com todos os seus concidadãos, independentemente das suas opções político-partidárias.
Sendo assim e considerada a complexidade deste Órgão do Poder Local Democrático em Portugal, o cidadão que se deseja para este século tem, obrigatoriamente, de saber as tarefas que recaem sobre o órgão ao qual se candidata, bem como as competências que lhe estão cometidas, e os recursos que dispõe para desenvolver um trabalho profícuo e de satisfação das necessidades da população. Antes de fazer promessas, deve inteirar-se da realidade.
No entanto, mesmo sendo conhecedor dos instrumentos legais que regem esta matéria, os meios para concretizar os objetivos têm que lhe ser fornecidos, em quantidade, em qualidade e em tempo útil. A não ser assim, não é justo nem legítimo que se lhe peçam responsabilidades.


Bibliografia


CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (2004), Versão de 2004. Porto: Porto Editora.
MADEC, Annick; MURARD Numa, (1995). Cidadania e Políticas Sociais, Tradução. Maria de Leiria. Lisboa: Instituto Piaget
TRINDADE, António Manuel Cachulo da, et. al, (2003). Administrar a Freguesia, Coimbra: Fundação Bissaya Barreto, Instituto Superior Bissaya Barreto, março/02.


Venade/Caminha – Portugal, 2020

Com o protesto da minha perene GRATIDÃO

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal

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